A atualização ao Marco Legal do Saneamento Básico pela Lei 14.026 de 2020 trouxe consigo a promessa da prestação regionalizada dos serviços de saneamento básico. A estruturação da prestação regionalizada tornou-se, inclusive, requisito para a alocação de recursos públicos federais e financiamentos por recursos da União.
A intenção principal seria combater o histórico problema de deficiência no acesso aos serviços de esgotamento sanitário, os quais alcançam apenas 51,2% do esgoto gerado, segundo última atualização de 2021 do Sistema Nacional de Informações do Saneamento.
Com a prestação regionalizada, isto é, em mais de um Município, é possível a obtenção de ganhos de escala, a viabilização técnica e financeira de projetos, e com isso, a necessária universalização dos serviços.
A partir de então, os Estados passaram a aprovar leis para criação de algumas das modalidades para a prestação regionalizada, seja para obtenção de recursos, seja para evitar que a própria União criasse impositivamente blocos de referência nos Estados.
E, de fato, até o momento, constata-se que apenas os Estados do Acre e Tocantins não criaram leis de referência para a prestação regionalizada, e no Estado de Minas Gerais e Rio de Janeiro foram instituídas soluções parciais. No primeiro foi criado um bloco de referência pelo Ministério do Desenvolvimento Regional com apenas 96 Municípios e o segundo houve a criação de quatro blocos abarcando 49 Municípios.
Porém a problemática da prestação regionalizada é muito mais complexa do que aparenta, e não pode ser resumida à mera criação de leis estaduais de estruturação da prestação regionalizada, como consta no painel de regionalização do SNIS.
A verdade é que a Lei n° 14.026 de 2020 possuí um pecado original. Apesar do conceito legal estar atrelado à efetiva prestação do serviço público de forma regionalizada, os decretos federais que regulamentaram a lei (e foram sucessivos decretos alterados por pressões políticas e econômicas) exigiam tão somente aspectos institucionais: a) a criação mediante ato normativo da estrutura de prestação regionalizada (microrregiões, unidades regionais, região metropolitana, etc.); b) a adesão pelos titulares dos serviços à estrutura de governança correspondente; c) a constituição da entidade de governança federativa.
Ou seja, para além da mera lei, é preciso criar e operacionalizar uma entidade de governança federativa e que desta sejam gerados efetivos contratos de concessão para a prestação regionalizada dos serviços de saneamento básico.
Quando o assunto é prestação regionalizada, algumas perguntas fundamentais para a agenda de 2024:
As entidades de governança serão efetivamente criadas e operacionalizadas?
A constituição da entidade de governança é fundamental para a sua operacionalização. Contudo, constata-se que apenas uma pequena parcela constituiu tais entidades, sendo a maioria por meio de regimentos internos provisórios feitos pelo próprio governo estadual (e não pelos Municípios que compõem as entidades) como Paraná, Goiás, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte, tendo Bahia e Alagoas regimentos internos efetivamente aprovados. Veja-se que no caso de unidades regionais, há ainda a necessidade de adesão dos Municípios ao modelo.
Os projetos de concessão serão alinhados com as regionalizações e com as estruturas de prestação regionalizada?
A prestação regionalizada só será concretizada mediante projetos de concessão dos serviços públicos que estejam em conformidade com as divisões territoriais organizadas nas leis de regionalização ou de acordo com planejamento estratégico dos Estados a fim de assegurar cobertura de 100% do território. Exemplo de sucesso é o caso do Alagoas que licitou as concessões para seus três blocos regionais.
Qual será o planejamento estratégico para garantir a universalização em todo território?
O decreto federal n° 11.599/2023 apresenta uma série de exceções que dificultam ou ao menos desincentivam a prestação regionalizada. Assim, pelo seu art. 15 estariam dispensadas da exigência de estruturação da prestação regionalizada para alocação de recursos as seguintes situações:
- a) a alocação de recursos públicos federais e aos financiamentos com recursos da União ou com recursos geridos ou operados por órgãos ou entidades da União realizados até 31 de dezembro de 2025;
- b) municípios com prestação delegada por meio de contratos de programa regulares em vigor, firmados anteriormente à data de publicação deste Decreto, nos casos em que houve comprovação da capacidade econômico-financeira pelo respectivo prestador, nos termos do disposto em regulamento;
- c) municípios com prestação delegada por meio de contratos de concessão ou de parcerias público-privadas precedidos de licitação, firmados anteriormente à data de publicação deste Decreto ou cuja concessão ou parceria público-privada já tenha sido licitada, ou submetida à consulta pública ou que seja objeto de estudos já contratados pelas instituições financeiras federais
Essas exceções devem ser objeto de planejamento estratégico por parte dos Estados, uma vez que Municípios menos rentáveis do ponto de vista financeiro podem ter ficado de fora dos projetos de concessões, contratos de concessão e contratos de programa em operação.
Nesse sentido, é fundamental a cobrança pelos órgãos de controle para que os planos estaduais ou regionais de saneamento básico cumpram a Lei n° 11.445/2007 que exige em seu conteúdo a inclusão dos objetivos e metas de curto, médio e longo prazos para a universalização, com a inclusão de programas, projetos e ações necessárias para atingir tais objetivos e as metas.
NATHALIA LIMA BARRETO – Doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela UFPR. Professora universitária em Direito. Advogada especializada em direito do saneamento básico. Vice-presidente da Comissão de Direito à Cidade da OAB/PR.